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terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Direito deve se intrometer no mundo virtual?

O Direito, o conjunto de regras jurídicas e suas interpretações, é uma das ligas de possibilidade social. Impossível a convivência sem regras. Se não houver a norma legal, haverá a regra expressão da vontade do mais forte. As regras, jurídicas ou não, me obstaculizam avançar limites, mas me prometem que dentro de determinada margem eu serei protegido. A regra é superego, é pressuposto de civilização.
O importante no conjunto de regras, para o seu devido funcionamento, são a confiança e a adesão. O termo técnico é adesão, mas penso que não diz o suficiente. Uso as regras de trânsito para exemplificar. Tenho que supor (confiança) que, se dirijo em uma via preferencial, quem vai adentrá-la tomará as devidas cautelas (adesão). Para o trânsito funcionar, não basta que eu adira, é necessário contar com a adesão das demais pessoas, ou seja, a confiança. Se eu não confiar, serei obrigado a parar em cada cruzamento, terei que me pôr precatado para um acidente a cada momento. O trânsito pararia, simplesmente.
Haverá regras, pois. O sistema de produção das regras tem, ou supostamente tem, uma autorização social para funcionar. Ele é composto, principalmente, do Legislativo, que produz a norma (no Brasil, o Executivo é concorrente do Legislativo na edição de textos legais) e do Judiciário, que a interpreta (o Judiciário brasileiro deu-se o poder de tornar tão elástica a sua função interpretativa, que legisla, e em abundância).
O Direito sempre foi a reboque das transformações sociais. Seja: mudavam os hábitos. Aí, então, um dia, mudavam-se as normas, depois de muita resistência dos conservadores. Essas resistências logravam manter normas muitas vezes vencidas pelos costumes por mais de século. A sociedade se movia lentamente e o poder conservador conseguia controlar as coisas.
Atualmente vivemos no que se chama de sociedade acelerada. A tecnologia mudou completamente as formas e mesmo as possibilidades de as regras terem domínio sobre todos os acontecimentos sociais. Se um dia o Direito controlou, ou teve a pretensão de controlar tudo, hoje isso é impossível. Se me proíbem um remédio, eu o importo. Se me proíbem alguma droga, eu aprendo a fabricá-la em algum site. Se me proíbem um filme, ou o vejo no Youtube. Se me proíbem publicar algo, eu público no exterior, com o mesmo efeito de publicar aqui.
E mais: como o Direito vai normatizar o uso da tecnologia que estará disponível amanhã? Como controlará as ferramentas disponíveis na internet, comumente postadas em um país, mas com disponibilidade universal? E questões de fundo moral relevante, como pornografia infantil? De que forma administrá-las, quem vai fazê-lo, com autorização de quem? São assuntos que estão postos para a sociedade discutir. Mas... Qual sociedade? A de cada nação? Ou a universal? Sim, porque o que decidirmos aqui não terá força além da fronteira, e o mundo virtual está livre disso.
“Prisões de pedófilos abrem debate sobre privacidade on-line. Microsoft e Google avisaram a polícia nos EUA sobre conteúdo suspeito hospedado em serviços das empresas” (FSP, 12ago14). Era pedofilia. Ficou simpático. Bem, mas... Isso está nas regras? Isso é Direito? Aqui temos um caso em que empresas privadas tomam uma iniciativa punitiva (denúncia) após, com os devidos recursos técnicos, bisbilhotar as contas, ou as páginas privadas on-line de seus clientes. Essas empresas não possuem autorização da sociedade para fazer o que fizeram. E como investigaram isso, podem espionar o que quiserem.
Pornografia infantil, como outras coisas na internet, é coisa horrorosa. Essa, contudo, não é a questão. A questão é o atropelo à ideia de Direito socialmente produzido e aplicado pelas instituições jurídico-políticas de um país. Se para uma escuta telefônica investigativa é necessária uma lei e uma autorização judicial, como empresas privadas podem saber, sem qualquer licença, de minhas pequenas contravenções ou grandes crimes? O Direito, claro, não terá velocidade real para cuidar disso. Quem poderá fazê-lo? É desejável que alguém o faça? Não seria melhor aprendermos sozinhos a produzir regras de direção para o trânsito pelo mundo cibernético?

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