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quarta-feira, 1 de abril de 2015

Antes o 1º de Abril fosse somente o dia da mentira, mas é a data da vergonha

Eduardo Januário Newton - 01/04/2015
Antes o 1 de Abril fosse somente o dia da mentira mas a data da vergonha Por Eduardo Janurio Newton
Quem nunca esteve em um estádio de futebol e se deparou, as vezes sem saber quem era a razão da homenagem, com o braço do árbitro levantado com o indicador apontando para o alto? O gesto daquele que sempre é vítima de todos os adjetivos – nomináveis e também impublicáveis – se refere a um minuto de silêncio em homenagem póstuma. Uma das vantagens de ver o jogo no conforto do lar, além de poder consumir bebida alcóolica sem nenhuma proibição legal, é saber o destinatário do tributo. Aquele minuto de silêncio, que de 60 segundos somente tem a alcunha, é pautado pelo luto, pela homenagem e pela reflexão da figura do falecido.
Contudo, o presente texto não trata das falhas de comunicação existente nos estádios de futebol brasileiros, inclusive nas “arenas padrão FIFA”. Ele versa sobre a necessidade de se realizar uma outra homenagem daqueles que não mais se encontram entre os vivos por razão exclusiva de um passado estatal autoritário, bem como de um valor imprescindível que durante mais de vinte anos foi retirado da convivência política dos cidadãos brasileiros: a experiência democrática.
Se me for permitido usar a 1ª pessoa do singular, estilo que não sou muito familiarizado, quiçá por querer, e de maneira inocente, manter uma falsa distância entre eu e o meu leitor, ouso a propor, e com base no trinômio: luto-homenagem-reflexão, uma nova forma de exercício desse ato simbólico, que não precisará de custosos estádios que não aparentam os gastos públicos neles realizados, de disputas esportivas, de campeonatos (des) importantes ou quaisquer outros eventos dessa espécie, mas tão-somente da consciência cívica de um povo que já foi às ruas pleitear pela eleição direta para Presidente, e não como um minoritário e vergonhoso grupo que recentemente portou cartazes em língua inglesa solicitando a intervenção militar.
Nesse instante, realizo uma pequena pausa reflexiva. A decisão de escrever esse texto não foi aleatória tampouco se relacionou unicamente com a data da última quartelada que implicou no alijamento do poder popular por mais de duas décadas. Na verdade, a lição de Boaventura de Sousa Santos[ii] no sentido de que todo conhecimento é biográfico, mostra-se totalmente pertinente. Apesar da formação jurídica – bacharelado e mestrado – e em história – bacharelado -, durante a pré-adolescência, adolescência e início da fase adulta estudei em centros de ensino militares, o que pode parecer, no mínimo, inusitado para os rumos profissionais trilhados em que a argumentação se mostra diuturnamente a mais poderosa arma. Além do adestramento, dos exercícios de ordem unida – a continência se presta, nunca se bate, o marchar é o andar solene de uma tropa, as ordens devem ser primeiro cumpridas. Em vez de reflexão, para muitos instrutores era a flexão de braço algo a ser comemorado ou o objeto da glória conquistada a partir da superação do número anterior de repetições realizadas. Realizo uma necessária ressalva, nem todos militares possuíam esse perfil, não sendo, portanto, correto realizar qualquer generalização. Não me envergonho de ter estudado durante nove anos em colégios dessa espécie – Colégio Militar de Brasília, Colégio Naval e Escola Naval. Adentrei por força do meu esforço e sai quando não mais me sentia integrado com aquela realidade. Na verdade, recentemente fui até comunicado que deveria ser considerado um ex-integrante da minha turma. Até o presente momento, fiquei a refletir se não seria a repetição cômica da pena de banimento. Mais da metade desse período de estudo, foi realizado em regime de internato. A minha paixão pela leitura adquiriu a força necessária nessa fase da minha vida. Aliás, o fato de obrigatoriamente ficar duas horas, por noite, sentado em uma cadeira em sala de aula, nem que fosse para fingir que estudava, me permitiu descobrir a potência que os livros trazem consigo. Os livros me levavam para a descoberta de outras realidades. O prazer da leitura foi, sem sombra de dúvida, a maior “dívida” que trago dos tempos em que vestia farda, sendo pública a minha confissão de incapacidade de quitar esse débito. Já a disciplina não teve o mesmo destino ou sorte, o que justificou as mais diversas sanções, que culminavam com a proibição de visitar o mundo externo nos finais de semana. Os motivos, que poderiam parecer tolos para quem vive no mundo civil, eram de suma importância para aquele cenário, dentre os quais poderia citar: o cabelo grande, a barba por fazer – mesmo ainda hoje sendo um imberbe -, o sapato sujo, o fato de não acordar quando ecoava o toque de alvorada, a cama não alinhada conforme os regulamentos.
Quando percebi que a vontade de me tornar oficial da Marinha do Brasil tinha se perdido em alguma parte do Oceano Atlântico, decidi realizar uma aposta, abandonei aquele projeto e pedi o meu desligamento da Marinha do Brasil. Após o transcurso de 15 anos, tenho certeza de que fiz a escolha certa. Como toda experiência, o tempo de da vida militar teve momentos agradáveis e outros que poderiam ser tidos como deploráveis. Ao apresentar uma crítica ao papel das Forças Armadas durante determinado período histórico, eu não adoto qualquer postura que poderia ser revanchista ou cometo qualquer ato de ingratidão. Foram aqueles anos nas escolas militares que me permitiram conhecer novas pessoas, cidades e, principalmente, perspectivas diferentes de um jovem nascido em Brasília no ano de 1980. É lógica republicana, que deve pautar o exame de todas as instituições públicas, o que, certamente, inclui as Forças Armadas, seus acertos devem ser louvados, e aqui poderiam ser destacados os bravos pracinhas da FEB, a atuação da Marinha em favor da população ribeirinha na Amazônia e o trabalho realizado pelo Correio Aéreo Nacional, mas os erros não podem ser esquecidos ou abandonados pelo caminho da análise.
Em razão da notória resistência das lideranças militares e também civis reconhecerem o erro iniciado no dia 1º de Abril de 1964, as mentiras e vergonhas que remontam essa data devem ser objeto de recordação e também trabalhadas no âmbito do simbólico.
Jamais uma democracia poderia ter sido salva por um golpe dado no dia da mentira. Por sinal, insinceridades não faltaram: uma democracia cujas eleições indiretas para Presidente era um jogo de cartas marcadas a partir do nome escolhido pelo Exército e acolhido pela ARENA; os suicídios fabricados – vide o emblemático caso Herzog – para encobrir as torturas praticadas nos quartéis e outros porões; um cargo de Vice-Presidente que de nada valia, tanto que no impedimento de Costa e Silva, Pedro Aleixo foi deixado de lado e um triunvirato militar assumiu em seu lugar, isto é, nem mesmo os próprios militares observavam a legalidade que por eles foi imposta; umaConstituição nova (1969) que eufemisticamente era chamada de Emenda nº 01. Essas, e tantas outras, foram algumas inverdades que marcaram o período da ditadura civil-militar.
Outrora, o dia 31 de Março, claro que a data da revolução foi antecipada para não coincidir com a data da mentira, era marcado pela leitura da Ordem do Dia nas unidades militares. Era a oportunidade de se louvar o “papel revolucionário” das Forças Armadas, que teriam impedido a instalação de uma “República Sindicalista” ou algo nesse sentido. Ao menos, esses atos não são mais lidos para as tropas[iii]. Se os clubes militares, que não possuem qualquer vínculo estatal, realizam atos em comemoração à data em questão, o faz única e exclusivamente no legítimo exercício da liberdade de expressão, que anteriormente era negada por esses que hoje a usufruem.
Porém, é necessário avançar. Não basta somente deixar de louvar o golpe diante da tropa. É imperiosa a necessidade das Forças Armadas levarem a público o seu erro, que não foi somente o levante iniciado em Juiz de Fora por Olympio Mourão Filho, mas, principalmente, os diversos atos bárbaros cometidos até o dia 15 de Março de 1985, quando pela porta lateral deixou o poder o último general-presidente. E com o intuito de não demonstrar qualquer sectarismo, os setores da sociedade civil, vide àqueles que financiaram a Operação Bandeirante, que apoiaram as ilegalidades devem também realizar a devida mea culpa.
O reconhecimento dos erros sequer pode ser justificado pelo argumento de uma eventual guerra interna. O Estado jamais pode querer se equiparar ao criminoso, e essa lição é ainda atual diante das lutas contra drogas, corrupção e terrorismo, sob pena de perder a sua legitimidade no uso da força. Aliás, é importante aferir que quem muito quer punir e a qualquer custo, deveria, por medida de cautela, prudência e segurança – quem sabe, enfim, seja aferida uma real aplicação para o vago conceito da ordem pública -, se afastar do exercício do poder estatal e buscar apoio, que poderia ser de natureza psicológica, psiquiátrica ou espiritual.
Em nenhuma democracia subsiste às Forças Armadas a possibilidade de destituir um governo constituído. Em se tratando do caso brasileiro, não se pode ignorar o fato de que a república foi proclamada por um desfile militar, que, segundo Aristides Lobo, foi acompanhado por um povo bestializado[iv]. Contudo, esse “pecado original” do regime republicano não deveria legitimar qualquer posterior intervenção militar, muito menos os atos cometidos por aqueles que achavam que tinham por missão salvaguardar o modelo arbitrariamente e ilegalmente instituído no 1º de Abril de 1964.
Em Agosto de 1954, uma parte dos vitoriosos de 1964 tentou ter acesso ao poder por via transversa, mas o ato extremo de Vargas impediu o golpe. A vitória nas urnas por Juscelino não foi garantia de posse. A renúncia de Jânio, fato esse ocorrido no dia do soldado, fez com que Jango tivesse que peregrinar pelo mundo até o advento da solução parlamentarista, que permitiu sua posse. Esses fatos, que ocorrem em aproximadamente 10 anos, demonstram a incapacidade de parcela dos militares compreenderem na história recente as suas funções em um regime democrático.
Com o perdão da palavra, o fato de parcela da população ter pedido a intervenção militar não justificou a “virada de mesa política”. Ademais, há de se cogitar a seguinte situação: e se a população pleiteasse o fim da Marinha, Exército e Aeronáutica? Seria adotado o modelo existente na Costa Rica que não possui exército permanente? A resposta, após alguns sorrisos, seria a clara negativa.
Recentemente, foi promulgada a Lei nº 13.050/14, que estabeleceu o Dia Nacional do Macarrão. O gosto gastronômico do Congresso Nacional, que coincidiu com a vontade do Executivo, justificou que o dia 25 de Outubro fosse celebrada anualmente o prato típico das cantinas. Quem sabe, não seria o momento desses mesmos poderes constituídos, como forma de permitir a reflexão coletiva, homenagear os que tombaram quando o Estado decidiu atuar de maneira ilícita e realizar um tributo à democracia, instituírem o dia 1º de Abril como o Dia da Vergonha. Com certeza, muitos são os braços que se levantarão nesse dia em respeito!
Notas e Referências:
[ii] “Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajectórias pessoas e colectivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligência absurdas sem fio nem pavio. No entanto, este saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje subterraneamente, clandestinamente, nos não-ditos de nossos trabalhos científicos”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. Umm discurso sobre as ciências. 7. Ed. São Paulo: Cortez, 2010. P. 85)
[iii] “Após ter determinado o fim das comemorações anuais nas Forças Armadas do golpe de 31 de Março de 1964 e em meio a polêmica sobre a criação da Comissão da Verdade, a presidente Dilma Rousseff recebeu nesta terça-feira, em Brasília, quatro condecorações dos comandos militares. Por seu passado de militante de grupos guerrilheiros durante o Regime Militar (1964-1985). Dilma tem relações tensas com setores das Forças Armadas. A data simbólica para os militares era celebrada no calendário oficial do Exército anualmente. No site da Força, o 31 de Março constava da lista de datas comemorativas (hoje são 23), mas foi retirado este ano. Na ordem do dia nos quartéis do País, comandantes costumavam fazer discursos exaltando o movimento que resultou na ditadura.” (Após calar Forças Armadas em 31 de Março, Dilma é condecorada. Disponível emhttp://ultimosegundo.ig.com.br/política/apos+calar+forças+armadas+em+31+de+marco+dilma+e+condecorada...# Acesso em 30 de Março de 2015)
[iv] “Em frase que tornou famosa, Aristides Lobo, o propagandista da República, manifestou seu desapontamento com a maneira pela qual foi proclamado o novo regime. Segundo ele, o povo, que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar.” (CARVALHO, José Murilo.Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. P. 9)

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